T&C Amazônia, 1(3): 21-32. 2003. (*)
O Desafio do Desenvolvimento Sustentável na Amazônia
Charles R. Clement & Adalberto L. Val
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA
&
José Arnaldo de Oliveira
Grupo de Trabalho Amazônico - GTA
Três notícias têm dominado as manchetes da mídia nacional tratando da Amazônia em 2003. A taxa de desmatamento aumentou a níveis históricos em 2002/3 - durante uma recessão econômica, quando era esperado um recuo. A soja está 'invadindo' a Amazônia e é acusada de ser a vilã da história do desmatamento, mas ao mesmo tempo é a heroína das exportações. Os biopiratas estão roubando a biodiversidade da Amazônia, tirando a oportunidade do Brasil se desenvolver com base neste recurso natural. Concomitantemente, a
retórica dos governos federal e a maioria dos estaduais é a favor do desenvolvimento
sustentável, sempre com a implicação de que a floresta precisa ser mantida de pé. A demanda pela manutenção da floresta é explícita nas declarações do MMA e da maioria das ONGs que representam os povos das florestas na Amazônia, bem como das ONGs ambientalistas internacionais.
A força dos mercados globalizados e as políticas dos governos para estimular tais
mercados têm sido acusadas de serem as causas básicas da perda de biodiversidade (Wood et
al. 2000) e do desmatamento (Schneider et al. 2000). Ou seja, os sinais dos mercados nacional
e internacional, dos ministérios e estados, e da sociedade continuam a ser contrastantes,
quando não conflitantes. Considerando estes contrastes, é valido afirmar que existem dúvidas
sobre a possibilidade de desenvolvimento sustentável na Amazônia. Aliás, pelas políticas
contrastantes de diferentes ministérios ainda não está claro o que o Brasil pretende fazer na
Amazônia, qual deveria ser o primeiro passo para planejar seu desenvolvimento - sustentável
ou não. Esperamos trazer um pouco de luz para esta discussão e apontar detalhes que não têm recebido suficiente atenção ainda, mesmo sendo ela desagradável para alguns atores.
A Questão de Escala
O Prof. Aziz Ab'Saber ponderou que duas escalas são fundamentais quando se pensa na
Amazônia (AmazonTech2003, Manaus, 27.09.03): a geográfica, pois a Amazônia tem escala
continental, com múltiplos estados e ministérios envolvidos na sua gestão; e a temporal, pois
sustentabilidade é função do tempo. Por ser de escala continental, todas as dimensões da
Amazônia representam mega-números.
A Amazônia Legal cobre aproximadamente 5.000.000 km², o que representa cerca de 60%
do Brasil. Desta área, a Floresta Amazônica cobre em torno de 3.300.000 km², o que
representa 40% do Brasil. Ao redor de 18.000.000 de Brasileiros vivem nessa região, sendo
que 68% em centros urbanos e 32% na zona rural. A Amazônia Legal abriga, ainda, a maioria
da população indígena brasileira, que soma ao redor de 256.000 pessoas que falam entre 170 e
180 línguas. Estes foram os primeiros povos da Amazônia e tem os seus direitos poucas vezes
respeitados pela sociedade nacional. Em alguns casos são ignorados ou mesmo considerados
um entrave para o desenvolvimento. Por outro lado, quando falamos de desenvolvimento sustentável, a posição acerca da importância desse grupo social é, por via de regra, clara e positiva. A razão é simples: os povos indígenas criaram a maioria do conhecimento tradicional sobre a biodiversidade, que a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB e sua transformação em lei brasileira - MP 2186) afirma ser importante para alcançar o tão desejado desenvolvimento sustentável.
Por ser grande e tropical, a Amazônia contém uma mega biodiversidade que não encontra paralelos no planeta. Seguindo a CDB, a biodiversidade deveria ser considerada em três
níveis: os ecossistemas, as espécies que os ocupam, e os genes que determinam as
características das espécies. A Amazônia brasileira contém quatro grandes ecossistemas: as florestas densas com 1.900.000 km²; as florestas não densas com 1.600.000 km²; os cerrados
com 700.000 km²; e as várzeas com 200.000 km², áreas essas aproximadas. Pelo menos
600.000 km² já são antropizados. Em termos de espécies, existem entre 5 e 7 mil espécies de animais vertebrados, 15 e 20 mil espécies de plantas superiores, 20 e 100 mil espécies de
microorganismos, e 1 e 10 milhões espécies de animais invertebrados. O que mais impressiona
é a magnitude de nossa ignorância sobre estes ecossistemas e espécies! Sobre os genes, nem
falaremos.
A escala sócio-econômica é também essencial quando se analisa desenvolvimento. A Amazônia Legal já é responsável pela produção de 20% da soja nacional, tem 11% do rebanho bovino, 13,5% da produção mineral e quase 7% do Produto Interno Bruto (PIB) (Novaes 2002). O impacto destes números é representado pelos 15% dos ecossistemas naturais alterados. Contudo, os 7% do PIB não tem oferecido muitos benefícios para o povo da região, pois a Amazônia concorre com o Nordeste para os piores Índices de
Desenvolvimento Humano do Brasil. A razão dos poucos benefícios é que o Brasil investe
pouco na Amazônia, tratando a região mais como "colônia" do que como parceiro legítimo
das outras regiões do país. O pouco investimento é especialmente visível em termos de
Ciência e Tecnologia (C&T), onde a média histórica oscila em torno de 2% dos investimentos federais em C&T. O CNPq afirma que serão 4% em 2003, que ainda é pouco, muito pouco. Tão pouco que podemos afirmar que a Amazônia paga para outras partes do Brasil fazer
C&T!!
E na escala temporal - Quanto tempo é suficiente? Uma geração? Lawrence et al. (2001) projetaram que as políticas dos governos federal e estaduais expostas no programa "Avança
Brasil" causarão o desmatamento de 25% da floresta até 2020. Em termos gerais o programa
"Brasil, um País de Todos" (PPA 2004-7) é muito similar ao "Avança Brasil". Que tal quatro
gerações? Cox et al. (2000) projetaram que o atual modelo de desenvolvimento mundial
causará o desmatamento de 100% das florestas amazônicas fora das Unidades de Conservação (UC) até 2080, e que grande parte das UCs será comprometida pela invasão de fogo nas suas bordas cada vez mais inflamáveis. Se a floresta de pé representa sustentabilidade, é evidente que os países e agências mundiais que propagam o atual modelo são hipócritas, pois conclamam o Brasil a manter sua floresta, quando o modelo não paga por sustentabilidade. E
o governo brasileiro? Qual é sua posição?
O Que É Desenvolvimento Sustentável?
O Dicionário Aurélio (1985) define desenvolvimento como sendo "O estágio econômico, social e político de uma comunidade, caracterizado por altos índices de rendimentos dos fatores de produção, i.e., os recursos naturais, o capital e o trabalho." E a escala geográfica? A comunidade é Tefé, Amazonas, Brasil, América do Sul ou o mundo? No mundo moderno,
uma comunidade não pode alcançar o desenvolvimento sustentável em isolamento. A
implicação é que o Brasil precisa pensar o assunto de forma holística - tanto no nível internacional, como nacional e regional, em sintonia entre os governos federal e estaduais.
A definição clássica de sustentabilidade vem da Comissão Mundial sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (1987): "Atender as necessidades da geração atual sem comprometer a habilidade de gerações futuras em atender as suas necessidades." Nossos políticos pensam em termos de gerações? E nossos empresários? E os técnicos de nossos ministérios? Se não aprendem a pensar assim, o desenvolvimento sustentável não será possível, pois este tipo de desenvolvimento requer muito mais planejamento por exigir equidade entre gerações.
Um exemplo do não pensar de forma holística é a relação entre a Amazônia e o Brasil central em termos climáticos. Se a previsão de Cox et al. (2000) tornar-se realidade, haverá implicações climáticas: a Amazônia virará cerrado (Walker et al. 1995). Salati & Nobre (1991) estimaram que a Amazônia repassa 588 mm chuva/ano ao Brasil central, onde o Cerrado recebe atualmente entre 1200 e 1800 mm chuva/ano; ou seja, a Amazônia contribui de forma
significante para a chuva no Cerrado. Se a Amazônia virar cerrado, receberá chuva similar ao
intervalo do Cerrado atual e repassará menos umidade para o Brasil central, e o Cerrado atual
poderá secar tanto que não sustentará a agricultura de grãos, que é a base de sua atividade econômica hoje, bem como das exportações que mantém o superávit comercial. Devido a outras influências climáticas ao longo do próximo século de mudanças, o INPE ainda não afirma que o Cerrado atual será mais seco (Carlos A. Nobre, 2003, com. pess.), mas é uma possibilidade que o governo federal não pode ignorar. Quais ministérios estão atentos a esta possibilidade hoje? Quais estão se preparando para um Cerrado mais seco?
Além de a chuva atender a agricultura do Cerrado, a mesma chuva abastece os rios que
originam no Brasil central, incluindo o Paraguai/Paraná, o São Francisco, o Tapajós, o Xingu,
e o Tocantins/Araguaia. A influência da diminuição das chuvas oriundas da Amazônia no
norte do Brasil central é mais certa do que no sul do Brasil central, já que o norte realmente é parte da bacia amazônica. O que acontecerá com a vazão do rio Tocantins, que abastece a
hidroelétrica de Tucuruí? Lúcio Flávio Pinto (2002) divulgou que a hidrelétrica de Belo Monte sofrerá de deficiência de vazão do rio Xingu durante 4 ou 5 meses por ano e não gerará excedentes de energia como atualmente configurado; isto sem considerar o
desmatamento na Amazônia. E se as cabeceiras do rio Xingu forem desmatadas? Aliás, já
estão sendo desmatados a uma taxa acelerada. Tudo isto, sem falar do incremento no
assoreamento dos rios, que sempre acompanha o desmatamento. Quais Ministérios estão
atentos a essa possibilidade hoje?
Estes exemplos sugerem que o desenvolvimento sustentável da Amazônia deveria ser feito com a floresta de pé, como declara o MMA e os povos da floresta, pois não é apenas a
Amazônia que está em jogo, mas o Brasil central também. No entanto, o programa "Brasil,
um país de Todos" não reconhece isto em termos de investimentos, somente em termos
retóricos. O MMA toma isto como pressuposto, mas o MMA não é um ministério importante nas decisões econômicas do governo federal, onde outras decisões demonstram claramente uma predisposição em favor do atual modelo de desenvolvimento mundial. Ou seja, existe
uma forte contradição no governo federal (sem mencionar os estaduais!) entre a retórica e o
investimento, quando se trata da Amazônia.
O Desafio do Desenvolvimento Sustentável
Partindo da pressuposição de que o desenvolvimento sustentável da Amazônia exigirá que a floresta seja mantida de pé e funcionando, encontramos um grave problema: não sabemos como fazer isto e gerar o crescimento econômico. Não existe um acervo de conhecimento de C&T disponível que atenda esta demanda, dada a escala da Amazônia. É certo que existem muitas idéias e até muitas experiências bem sucedidas, mas todas são em escala pequena. Afinal, quantas toneladas são necessárias para abastecer os mercados de castanha do Brasil, de óleo de castanha do Brasil, de óleo de andiroba, de raíz de muirapuama, etc.? Embora os números são incertos, todos são muito menores do que precisamos para mudar os índices de desenvolvimento humano na Amazônia, especialmente no interior onde estes índices são uma vergonha nacional.
Pior que isto, nenhum país do mundo tem feito algo parecido! Afinal, Homo sapiens depende de agricultura e a definição de agricultura é o cultivo dos campos. Todas as sociedades humanas bem sucedidas foram e são agrícolas, e todas as nações bem sucedidas, hoje e no passado, foram agrícolas e defendem vigorosamente sua agricultura - veja as discussões sobre subsídios agrícolas na OMC e na ALCA. Portanto, não existe um modelo que o Brasil pode seguir para o desenvolvimento sustentável da Amazônia com a floresta de
pé. O Brasil vai precisar desenvolver este novo modelo. Vai precisar ousar na busca de novos
modelos, novas concepções.
Além do fato de que o Brasil ainda não decidiu o que pretende fazer na Amazônia, o Brasil ainda não entendeu o que precisará fazer se realmente quer o desenvolvimento sustentável da Amazônia com a floresta de pé. A tão propalada falta de planejamento nacional ainda não foi resolvida, ao contrário da retórica do ministério encarregado por este setor. O desenvolvimento sustentável foi relegado ao MMA, em lugar de ser assumido pela Presidência
e todos os principais ministérios, começando com os da Fazenda, do Planejamento, das Minas
e Energia, dos Transportes, da Agricultura, para mencionar apenas aqueles com maiores
investimentos em favor do modelo atual insustentável. As questões de escala geográfica e
temporal precisam ser internalizadas pelos ministérios, pelos estados e pelos países da
Amazônia.
O planejamento integrado precisa enfrentar os custos da Amazônia (que são similares aos custos do Brasil, mas com características típicas do subdesenvolvimento agudo), além de
amenizar os custos do Brasil na Amazônia. A Amazônia precisa de um programa de investimento em infra-estrutura, mas este programa precisa tomar o desenvolvimento sustentável como base e não como retórica. Este programa precisa ter a C&T como peça fundamental, e com muito mais que os 3-4% dos investimentos na área, previstos pelo atual governo. Ressalte-se que não conhecemos o necessário, ainda, e o tempo é curto, dadas as previsões de Lawrence et al. (2001) e Cox et al. (2000), porque os investimentos não gerarão retornos imediatos. Os investimentos brasileiros são mais importantes, ainda, quando reconhecemos que o mercado global raramente paga pela sustentabilidade.
O caso da soja é emblemático da falta de planejamento em prol de uma Amazônia
sustentável (Clement & Val 2003). Diversos ministérios trabalharam de forma integrada em
apoio a esse agronegócio, organizando infra-estrutura de escoamento - a hidrovia do Madeira,
o porto de Itacoatiara etc. - e acesso a capital. Ao mesmo tempo, estes ministérios não
resolveram os custos do Brasil no centro-oeste e no sudeste, criando uma lógica inexorável
para a expansão da soja rumo a Amazônia. Igualmente importante, apoiaram a P&D que
geraram variedades e sistemas de produção para a soja entrar na Amazônia. O avanço da soja
na Amazônia mostra claramente que P&D geram resultados!! Embora muito criticado na
época, o cenário de Lawrence et al. (2001) está se concretizando com essa expansão e
continuação da maioria das políticas do "Avança Brasil". Tudo continua acontecendo sem que
a intervenção do MMA tenha efeito importante! Isto demonstra claramente que não se pode
relegar o desenvolvimento sustentável ao MMA - precisa ser de todos os ministérios,
começando no topo do governo!
Mais grave ainda é que, embora não sustentável, o modelo atual funciona! Ou seja, mesmo
com a falta de planejamento nacional, o sistema aplicado à região demonstrou resultados
econômicos e são justamente estes resultados que dificultam provar que o sistema está errado
(Novaes 2002). Entretanto, o sistema não estará errado se o Brasil tiver decidido sem alardes
transformar Amazônia em cerrado para se tornar uma potência agrícola. No entanto, ao que
nos consta, esta decisão nunca foi explicitamente assumida como política nacional, de forma
que podemos afirmar que um sistema funcionado, e bem, está errado para a Amazônia - se o
Brasil deseja manter a floresta de pé e as chuvas caindo normalmente no Brasil central. É uma
decisão política, e uma das mais importantes que este governo pode tomar.
Aí vem mais uma questão: se não a soja, o que? A resposta geralmente é: a biodiversidade
da Amazônia. Se esta resposta for válida por si só, o desmatamento não estaria acontecendo
na taxa atual, nem o povo da Amazônia estaria defrontando-se com alguns dos piores índices
de desenvolvimento humano do Brasil. Tem sido observado, com muita razão, que a
diversidade da própria floresta mina sua conservação devido a sua baixa densidade econômica
(May et al. 2002). Ou seja, a diversidade exuberante da floresta amazônica não combina com
o atual modelo de desenvolvimento mundial, que é baseado em monocultivos de todos os
tipos. Considerando esta limitação, a biodiversidade tem potencial para contribuir para o
desenvolvimento sustentável da Amazônia?
O Desafio da Biodiversidade
Antes de ver se a biodiversidade tem potencial para contribuir com o desenvolvimento
sustentável da Amazônia, precisamos ver o que é 'potencial'? De novo, segundo o Dicionário
Aurélio (1985): potencial. adj. 1. Respeitante a potência. 5. Filos. Que está em potência.
Seguindo a sequência: potência. s. 11. Filos. Caráter do que pode ser produzido, ou produzir
se, mas que ainda não existe (itálico adicionado). Ou seja, a biodiversidade por si só não vale
nada, o que explica a sua continua perda em todo o mundo.
Como transformar potencial em produto no mercado e especialmente em lucro? Dois
fatores são essenciais: empreendedores - com imaginação e com capacidade empresarial; e
investimentos - primeiro em C&T para produzir informações necessárias, segundo em P&D
para garantir qualidade e completar a cadeia de produção, terceiro em produção,
processamento e comercialização. A ONU já demonstrou que o Brasil é um país
excepcionalmente rico em empreendedores, embora a capacidade empresarial da maioria
desses empreendedores seja baixa. Mudar este quadro requer investimento, e a estrutura para
fazer isto existe - o SEBRAE e suas instituições irmãs, estão entre elas. Então, o que
realmente está faltando é investimentos em C&T, P&D e nas cadeias de produção. Como
notamos acima, o Brasil não investe na sua "colônia", o que ajuda a explicar porque a
biodiversidade da Amazônia tem contribuido pouco até este momento.
Quais são as opções econômicas oriundas da biodiversidade que merecem investimento e
quais são as conseqüências deste investimento? Acreditamos que existem seis grupos de
opções (ordenado pelo tamanho do acervo de conhecimento, ainda que escasso): agricultura e
pecuária; madeira; ecoturismo; produtos florestais não madeireiros; carbono; genes que
codificam funções úteis na indústria farmacêutica e afins.
Agricultura & Pecuária - Os povos indígenas domesticaram pelo menos 100 espécies de
plantas na região, pelo menos uma de enorme importância: a mandioca. A maioria das outras
são fruteiras. No entanto, mesmo com fruteiras, a opção por este grupo resultará em mais
desmatamento, embora com fruteiras uma cobertura semi-florestal pode ser reconstruída. Se
for agronegócio, é bom para os donos, mas salário mínimo para todos os outros atores. Se for
agricultura familiar, o problema será expandir a presença das instituições de P&D e de
extensão para atender uma população dispersa na escala geográfica. O Pronaf está começando
a planejar e a executar ações nessa direção e pode ajudar a mudar os índices de
desenvolvimento humano em algumas localidades. É importante frisar que não existe outro
'commodity' entre as plantas já domesticadas da região, o que significa que precisaremos
trabalhar muitas espécies para gerar resultados.
Madeira - A FAO estimou que existe pelo menos US$ 1 trilhão de estoque em pé na
Amazônia, mas a maioria das espécies não tem mercado. Madeira é o exemplo clássico para a
observação de May et al. (2002), já que as espécies com valor para o mercado estão dispersas
na floresta, com baixa densidade, comprometendo o retorno econômico. O manejo sustentável
é viável? Schneider et al. (2000) afirma que é, mas a maioria absoluta da madeira da Amazônia
é vendida no mercado interno, que quer madeira barata e não se importa se vem do manejo
sustentável ou resulta da destruição da floresta. Kahn (2002) sugeriu mecanismos e políticas
governamentais poderiam mudar esta equação, mas sua adoção dependerá de trabalho
integrado de diversos ministérios. Se a densidade econômica da floresta for aumentada - o que
é sacrilégio para muitos ambientalistas - a equação poderá melhorar. Como no caso do
agronegócio, o manejo florestal geralmente é bom para os donos, mas salário mínimo para
todos os outros. O Promanejo está começando a planejar e executar manejo comunitário, que
tem potencial para mudar os índices de desenvolvimento humano em algumas localidades, mas
não atende nem a demanda do mercado interno.
Ecoturismo - A contemplação da biodiversidade seguramente é sustentável, mas requer infra-estrutura de boa qualidade e capacitação de todos os atores na sua cadeia de produção. Mesmo quando todos estiverem capacitados, o ecoturismo é bom para os donos, mas levará um salário mínimo para todos os outros.
Produtos Florestais Não Madeireiros - Estes são a base da proposta da Zona Franca Verde, do governo do Amazonas, e o sonho das ONGs, mas é justamente a opção onde o acervo de conhecimento é mais escassa e a questão de escala geográfica é mais importante. Estes produtos incluem as plantas medicinais, aromáticos, óleos etc. que tem nichos de mercado de grande apelo popular, mas cujas escalas são sempre pequenas. Para que estes
produtos desempenhem um papel importante, precisaremos que sejam conhecidos rapidamente
e que sejam desenvolvidos, isto é, o processo implica em muita C&T e muito mais P&D.
Podemos fazer? Claro, mas não com os minguados investimentos atualmente disponíveis para
Amazônia neste setor.
Estes produtos tem, ainda, um porém: seu sucesso implica em agricultura (Homma 1992).
A razão é a mesma do caso de madeira - a baixa densidade econômica destes produtos na
floresta. Quando a demanda por um desses produtos cresce, a tendência é iniciar o manejo na
floresta, seguida por sua introdução em parcelas agroflorestais ou mesmo pomares e,
finalmente, a transferência da cultura para fora da Amazônia. A história da Amazônia é repleta
de exemplos nesse sentido, alguns dos quais bons para outras partes do Brasil ou mesmo para
o exterior, como é o caso clássico da seringa, mas todos deixaram um vazio na Amazônia. É
possível reverter essa tendência? Provavelmente não, mas criando cadeias de produção
sustentáveis, com tecnologias avançadas e adequadas, e agregando valor aos produtos
regionais ainda na região, como recomendou recentemente a Ministra Marina Silva,
certamente ajudará a manter a maior parte do lucro na Amazônia, por mais tempo. Mesmo
com essas limitações, esses produtos teriam um papel importante na mudança dos índices de
desenvolvimento humano em muitas localidades.
Carbono - Esta opção tem sido amplamente discutida por nosso colega do INPA, Phillip
M. Fearnside, mas requer que o governo do Brasil assuma a decisão de negociar a inclusão da
floresta de pé no Protocolo de Kyoto, o que hoje não está nos planos. Ainda, mecanismos de
direcionar benefícios ao interior da Amazônia precisam ser desenvolvidos. Nesta direção, o
Fundo de Desenvolvimento da Amazônia proposto pelo Senador Jefferson Pires seria uma
opção lógica.
Genes - Na era da biotecnologia que está se iniciando, esta opção toca na imaginação de
muita gente, desde a comunidade de C&T até as empresas de base biotecnológica nacional e
internacional. Embora essencial para o Brasil, não sabemos se o processo oferece os "altos
índices de rendimentos dos fatores de produção, i.e., os recursos naturais, o capital e o
trabalho" que são os fundamentos da definição de desenvolvimento, quando aplicado à
Amazônia. A razão é simples: uma vez identificado e isolado o gene de interesse, este gene
será vendido ao comprador que pagar mais - uma das leis do capitalismo, que não será
facilmente revogada! Isto explica por que as ONGs da Amazônia não são entusiastas do
modelo de bioprospecção atual. Ao mesmo tempo, isto não quer dizer que o Brasil não deva
seguir este caminho - deve, mas com os olhos bem abertos.
No entanto, a era da bioprospecção nas florestas tropicais poderia estar se encerrando
ainda em sua fase nascedoura, e por duas razões: compostos bioativos são encontrados em
todo o mundo e a era genômica poderia criar compostos bioativos altamente enfocados.
Recentemente foi proposto que o genoma humano aponta para o fato de que um número
limitado de genes codifica para um grande número de proteínas e, portanto, a probabilidade de
se encontrar genes úteis em nosso quintal é maior do que a originalmente imaginada (Tulp &
Bohlin 2002). No caso, nosso quintal é qualquer terreno baldio no primeiro mundo. Ou seja,
as florestas tropicais talvez não sejam imprescindíveis para a indústria farmacêutica. A mesma
lógica vale para a outra razão, com a genoma apontando para a proteômica e esta para o
remédio - sem necessidade de biodiversidade tropical. A implicação também é simples: ou o
Brasil faz por conta própria, ou as oportunidades que estes genes representam não serão
realizadas. No caso da genômica, o Brasil já está investindo e até a Amazônia está
representada - a UFAM, a UFPA e o INPA foram parceiros do genoma do Cromobacterium
violaceum. Contudo, lamentavelmente, projetos deste porte ainda tem repercussões sociais
reduzidas, pois o foco é neste caso, e em várias outras iniciativas, apenas na disponibilidade do
material biológico.
Então, a biodiversidade tem potencial para apoiar o desenvolvimento sustentável da
Amazônia? Claro que tem, mas os atuais investimentos não conseguirão mudar o quadro a
curto prazo; a médio prazo não haverá mais floresta de pé e não haverá a biodiversidade como
hoje.
Investindo na Amazônia
A atualidade dos investimentos brasileiros na Amazônia Legal é compatível com seu status
de "colônia". Existem seis centros da Embrapa, três institutos do MCT, duas Universidades
Federais de grande porte e oito de médio a pequeno porte. Todas as Instituições estão
sofrendo de falta de investimento e de contingenciamento, e não estão em condições de gerar
a informação necessária para apoiar o desenvolvimento sustentável desejado na velocidade
necessária. Além disso, em muitos casos as Instituições tem representado bases avançadas de
coleta de material biológico para as Instituições de outras partes do país - vide a orientação
para a colaboração Norte-Sul por meio dos fundos setoriais, por exemplo. Embora os
números pareçam similares aos de outras regiões do país em termos de densidade por estado,
é preciso lembrar que a Amazônia Legal representa 60% do Brasil, tem perto de 10% de sua
população e contribui com cerca de 7% do PIB. Mais uma vez a questão de escala entra em
jogo, e a escala do investimento é muito menor que a escala do desafio - muito menor.
Este desencontro entre escalas fica mais evidente ainda quando examinamos o número de
grupos de pesquisa. Seguindo o levantamento de 2002 do CNPq, o Brasil tem 15.158 grupos,
dos quais apenas 590 estão na Amazônia. Ou seja, 3,9% dos grupos de pesquisa estão
trabalhando com 60% do país.
Considerando que a biodiversidade é tida como o grande potencial da Amazônia e até do
Brasil, é válido perguntar quantos dos grupos de pesquisa trabalham com algum aspecto
diretamente ligado à biodiversidade. Usando a base de dados do CNPq, é válido afirmar que
as grandes áreas do conhecimento - Saúde, Biológicas e Agrárias - trabalham com a
biodiversidade, embora seja possível que mais alguns grupos também trabalhem. Do universo
dos grupos, 41,5 % trabalham com algum aspecto da biodiversidade, sendo que Saúde
representa 16,6%, Biológicas representa 14%, e Agrárias representa 10,9%. Na Amazônia,
45,9% dos grupos trabalham com biodiversidade, sendo que Saúde tem 61 grupos, Biológicas
tem 110 e Agrárias tem 100 grupos, o que representa 1,78% dos grupos de pesquisa do Brasil
trabalhando com a biodiversidade na Amazônia!! Precisa ser reconhecido que outros grupos
também trabalham com a biodiversidade da Amazônia, mas não trabalham na Amazônia.
O futuro dos grupos está na formação de novos recursos humanos. Considerando que os
grupos são formados por um doutor líder e um grupo de doutores, mestres, graduados e
técnicos, a formação de novos doutores é um parâmetro importante para avaliar o futuro dos
grupos de pesquisa. Seguindo o mais recente levantamento da CAPES, em 2002 os grupos de
pesquisa formaram 6.843 novos doutores, sendo que 38 (0,5%) foram formados na
Amazônia! É intrigante, mas apenas num ano o país formou 10 vezes mais doutores do que o
total daqueles existentes hoje na Amazônia, sendo que apenas no ano passado mais de 2.000
doutores estavam desempregados ou sub-empregados na região sudeste. Por si só, estes
números indicam que é preciso conceber urgentemente uma política para fixação de recursos
humanos na Amazônia. O que esses números nos dizem? É possível que a política de fixação
de recursos humanos do governo federal por meio de bolsas de estudo não seja atrativa.
Pesquisadores bolsistas são "bóias frias" da ciência moderna.
Estes números irrisórios resultam de investimentos passados e atuais! Historicamente, 3%
dos investimentos em C&T e P&D federais são para Amazônia, ao mesmo tempo em que a
Amazônia gera ao redor de 7% do PIB brasileiro. Estes números demonstram claramente que
a Amazônia paga para outras regiões do Brasil fazer C&T e P&D. Agora que mostramos os
números, algum leitor ainda tem dúvidas? Ao longo da última década, pelo menos, todos os
governos afirmaram que a Amazônia é importante e que C&T é o caminho do
desenvolvimento do Brasil. Há claramente um desencontro entre essa retórica e a prática.
Conclusões
Será que os autores estão apelando para o apocalipse? É ditado popular que o mundo
muda mais rapidamente hoje que antigamente. No início do século 20, falou-se que demoraria
séculos para o desmatamento da Mata Atlântica - levou 50 anos! Lawrence et al. (2000)
foram severamente criticados por suas previsões, mas conforme a soja avança, parece que eles
tinham razão. Detalhes aqui e detalhes ali podem ser criticáveis, mas a tendência é a
transformação da Amazônia em cerrado. É possível reverter esta tendência? Claro, mas requer
que o governo decida o que pretende fazer da Amazônia. Se pretende o desenvolvimento
sustentável com a floresta de pé, como querem os povos da floresta amazônica, muitos
brasileiros, os cientistas e pessoas do mundo a fora, então é necessário mudar a forma como o
governo trata o assunto, e iniciar um programa de investimento na Amazônia, como parte
integral do Brasil, inclusive e, principalmente, investimentos em C&T para viabilizar um futuro
com a floresta de pé. Em sendo a opção o modelo de desenvolvimento atual, com a floresta
transformada em cerrado, precisa assumir esta postura e, ainda, investir para viabilizar este
modelo. Não é mais possível ter um discurso retórico e outro plano de investimentos.
Referências
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* T & C Amazônia (ISSN 1678-3824) é uma publicação quadrimestral da FUCAPI (Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica), Manaus, AM. http://portal.fucapi.br.